Revista Ações Legais - page 28-29

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OPINIÃO
O momento é de exceção, pois difere da normalidade. Em que pese as leis especiais para
atender a emergência, o Direito Administrativo não é excepcional.
Para fazer frente a essa anormalidade nascem leis temporárias para acolhê-la. A exceção
é passageira, mas o Direito não sofre disrupção, pois o império da lei é característica fun-
damental do Estado Democrático de Direito. O Direito é, sim, evolutivo, como a socieda-
de e as relações o são. Os fatos da vida podem ser disruptivos e, para isso, o direito evolui
pra se adaptar a esses fatos.
Havendo princípios, e não há como não os reconhecer, não haverá ausência de normas.
A crise provocada pela necessidade do enfrentamento da emergência de saúde pública
induz, mesmo o mais desatento intérprete, visar o interesse geral, do cidadão a ser prote-
gido pelo Estado, no sentido de que sejam satisfeitas as necessidades de uma população,
de regra composta pelos menos favorecidos, e dominada por um coletivo de vírus com
cerca de 100 a 160 milionésimo de milímetro cada.
Para períodos de exceção, como este que estamos vivendo, a sociedade clama por uma
atuação destacada do Advogado Público.
Não foi por pouca razão que o legislador constituinte elencou na Constituição da Repú-
blica, no Capítulo VI, arts. 131 e 132, a Advocacia Pública no Brasil como uma das Funções
Essenciais da Justiça, para exercer as atividades de consultoria e assessoramento jurídi-
co das unidades federativas.
A Advocacia Pública exige renitência.
Não é incomum um ou outro Governo dizer: “tudo quero”, acreditando que “tudo deve”
e, pior, que “tudo pode”.
É ao Advogado Público, aquele que advoga para o Estado, a quem cabe, via de regra, res-
ponder, diante do desejo do governante realizar seus atos, suas inquietantes questões:
se “quero”, “eu devo?”, “eu posso?”
Nem tudo que o governo quer, ele pode; nem tudo que o governo pode, ele deve; e nem
tudo que o governo deve, ele quer”
6
. Cabe ao Advogado Público demostrar, diante da-
quilo que o Governo quer, o que o Governo pode, e deve fazer.
Sei que há léguas a nos separar
6 Parafraseando o filósofo paranaense, professor da USP, quando, ao tratar da ética (e aqui e
sempre é um tema fundamental): “Ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para res-
ponder a três grandes questões da vida: (1) quer?; (2) deve?; (3) pode? Disponível em:
.
com/cortellaoficial/status/1239852772893360129
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.
7
Este papel, do Procurador do Estado, do Município, Federal e do Advogado da União
exige, tanto quanto conhecimento, independência na atuação. É imprescindível que este
servidor público compreenda a quem ele serve: à cidadania; e sob quais fundamentos ele
serve: legal e constitucional. Não é, portanto, um serviçal do Governo, mas do povo; não
fundamenta suas decisões na vontade do governante, mas no que orienta a lei e a Cons-
tituição da República.
Como não lembrar um dos ingredientes da receita do experiente Procurador do Estado
do Paraná aposentado, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
A liberdade que o conhecimento propicia arma o Procurador do Estado contra a intromis-
são ilegal e indevida das ingerências políticas, mas isso só é eficaz quando a fonte primei-
ra do seu agir é o cidadão e a cidadania. Eles, como antes se viu, são a razão de ser do pró-
prio Estado e, portanto, precisam ser preservados, se for o caso, contra o próprio Estado,
quando o seu governo não age conforme a lei. Se for o caso, contramajoritariamente
8
.
Por isso sua obrigação é a de se tiver que dizer não, a resposta seja “não!”; se o pedido
for para “fazer desse jeito”, a resposta possa ser: “só se for de outro jeito!”; se o sim não
for bem “sim”, que seja feito, mas condicionado aos requisitos constitucionais e legais.
Por isso tem independência; por isso foi alçado ao lugar de tanta responsabilidade por
meio de concurso público; por isso não cabe ao pávido ser Advogado Público; sua condi-
ção não lhe dá o direito de se constranger diante do Poder, diante de pressões das mais
diversas.
Se um governante fere a Constituição, fere também o Advogado Público, pois é sua fun-
ção protegê-la. Se o governante se acovarda diante do desrespeito ao Estado Democrá-
tico de Direito, seja de quem for, desrespeita também as prerrogativas do Advogado Pú-
blico, pois deste Estado é seu defensor.
Por outro lado, a Advocacia Pública não é, via de regra, adversa ao Governo. É, dentro
das balizas ofertadas pelas normas constitucionais e infraconstitucionais, fundamental
para que as Políticas Públicas sejam planejadas, formuladas, implementadas e avaliadas
de modo escorreito, sem tropeçar na ordem jurídica.
7 BUARQUE, Chico. Tanto Mar. Chico 50 Anos - O Politico. Universal Music Ltda, 1978.
8 COUTINHO, Jacinto Nelson. Procurador do Estado Sim; Procurador do Governo, Não! REVISTA
JURÍDICA DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DO PARANÁ DIREITO DO ESTADO EM DEBATE:
edição comemorativa 10 anos. / Curitiba: Procuradoria-Geral do Estado do Paraná. - 2019.
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